Por princípio sou contra posts não originais ou que consistam de textos muito extensos. Mas desta vez violarei ambas ideias para postar um texto que me chegou via e-mail.
Numa nota final devo dizer que a autenticidade desta entrevista e a insenção dos moldes em que ela foi feita tem estado a ser questionado. Ainda assim pareceu-me pertinente não por uma inquestionável veracidade, mas antes por uma inquestionável possibilidade de ser verdade.
«O colunista Ronaldo Jabor entrevistou para o Jornal O GLOBO um bandido famoso, "Marcola", líder do PCC (Primeiro Comando da Capital, também conhecido por Partido do Crime), que recentemente pôs S. Paulo a ferro e fogo.
«O colunista Ronaldo Jabor entrevistou para o Jornal O GLOBO um bandido famoso, "Marcola", líder do PCC (Primeiro Comando da Capital, também conhecido por Partido do Crime), que recentemente pôs S. Paulo a ferro e fogo.
Marcos Camacho, o "Marcola", cumpre actualmente uma pena de 44 anos numa prisão de segurança máxima. É um documento surpreendente, inteligente e lúcido, sobre as relações entre poder, crime e sociedade. Um inferno sem esperança.
- Você é do PCC?
- Mais que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível... vocês nunca me olharam durante décadas... E antigamente era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralasperiferias. A solução que nunca vinha... Que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a "beleza dos morros ao amanhecer", essas coisas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo... Nós somos início tardio de vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão...
- Mas... A solução seria...
- Solução? Não há mais solução, cara... A própria ideia de "solução" já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento económico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma "tirania esclarecida", que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice (ou você acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC...) e do Judiciário, que impede punições. Teria de haver uma reforma radical do processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até Conference Calls entre presídios...) E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa mudança psicossocial profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não há solução.
- Você não têm medo de morrer?
- Você é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar e me matar... Mas eu posso mandar matar vocês lá fora... Nós somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba... Estamos no centro do Insolúvel, mesmo...Vocês no bem e eu no mal e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira. Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o presunto diário, desovado numa vala... Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em "seja marginal, seja herói"? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Eu sou inteligente. Eu leio, li 3.000 livros e leio Dante... Mas meus soldados todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto desse país. Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade. Já surgiu uma nova linguagem. Vocês não ouvem as gravações feitas "com autorização da Justiça"? Pois é. É outra língua. Estamos diante de uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares, Internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie social, são fungos de um grande erro sujo.
- O que mudou nas periferias?
- Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem US$40 milhões como o Beira-Mar não manda? Com 40 milhões a prisão é um hotel, um escritório... Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro, tá ligado? Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila, é despedido e jogado no "microondas"... Ha, ha... Vocês são o Estado quebrado, dominado por incompetentes. Nós temos métodos ágeis de gestão. Vocês são lentos e burocráticos. Nós lutamos em terreno próprio. Vocês, em terra estranha. Nós não tememos a morte. Vocês morrem de medo. Nós somos bem armados. Vocês vão de três-oitão. Nós estamos no ataque. Vocês, na defesa. Vocês têm mania de humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês de palhaços. Nós somos ajudados pela população das favelas, por medo ou por amor. Vocês são odiados. Vocês são regionais, provincianos. Nossas armas e produto vêm de fora, somos globais. Nós não esquecemos de vocês, são nossos fregueses. Vocês nos esquecem assim que passa o surto de violência.
- Mas o que devemos fazer?
- Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? O Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o rancho dos recrutas... O país está quebrado, sustentando um Estado morto a juros de 20% ao ano, e o Lula ainda aumenta os gastos públicos, empregando 40 mil picaretas. O Exército vai lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o Clausewitz, "Sobre a guerra". Não há perspectiva de êxito... Nós somos formigas devoradoras, escondidas nas brechas... A gente já tem até foguete antitanques... Se bobear, vão rolar uns Stingers aí... Pra acabar com a gente, só jogando bomba atómica nas favelas... Aliás, a gente acaba arranjando também "umazinha", daquelas bombas sujas mesmo... Já pensou? Ipanema radioativa?
- Mas... não haveria solução?
- Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem de defender a "normalidade". Não há mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria incompetência. Mas vou ser franco... na boa... na moral... Estamos todos no centro do Insolúvel. Só que nós vivemos dele e vocês... não têm saída. Só a merda. E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui, mano, não há solução. Sabem por quê? Porque vocês não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o divino Dante: "Lasciate ogni speranza voi che entrate!" -Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno. »
5 comentários:
O título da posta é obsceno: até aqui tenho de gramar frases intrinsecamente ligadas com a Tertúlia Libertas? Há limites!
A análise do nosso mano metralha é brutalmente incisiva e acertada, a conclusão é que é precipitada.
A certeza para a sua vitória baseia-se na decadência da classe política brasileira, que ele próprio reconhece que não governa. Ele que lê tanto já se deveria ter apercebido que será da própria sociedade que virá a resposta para o colapso social brasileiro, e não do homem providencial que ele afirma não vir.
Um erro nas premissas causa o falhanço da conclusão.
As sociedades contêm em si a forma da sua redenção.
O tipo é livre de acreditar na perdição irremediável do ser humano, mas a História não está do lado dele.
Vimos como a sociedade alemã que tanto apoio deu a Hitler voltou a ser humanista.
Vimos como um Estado corrupto que desabou (o romano) se reergueu.
Vimos como um Portugal fechado, obscuro, agrilhoado, se tornou aberto à palavra e à acção de todos.
E já vimos como o Brasil foi passando por bons e maus momentos.
Porém, Zé, não há dúvida de que se trata de um texto a ser lido.
Oh Zé Pedro, eu até queria comentar. Mas para tal vou precisar de algum tempo livre para ler o post o que para já não está fácil... Não há por aí uma versão resumida? ;)
Primeiro, apesar de extenso, muitos parabens pelo post.
Acho extraordinario poder beber estas palavras que nos explicam um estado de alma.
Apesar de ser um problema com uma dimensão consideravel,entre achar que não há soluçao e acreditar que ela existe mas ainda está longe, concordo com o Paulo e olhando para trás podemos ter esperança que o Brasil, apesar do atraso dos seus actuais dirigentes políticos, ainda se pode salvar.
Bruno:
Já mandei o mail para a Europa-América para saber se há planos para um livrinho amarelo e para quando estará disponível.
Agora a sério. Eu interpreto a alusão que o Marcola está a fazer como sendo referente a um ciclo muito mais vasto.
Mais vasto geograficamente, pois creio que a alusão ao Brasil é meramente uma questão de raciocínio dedutivo que nos permite alastrar analogamente a ideia a outras sociedades de modelo ocidental (com as diferenças intrínsecas a cada qual). A carapuça serve noutros lados.
Mais vasto também a nível temporal. Creio que o Marcola está a identificar uma tendência que, a pegar noutros países, pode marcar uma grande mudança na sociedade ocidental como a conhecemos.
A analogia com o Império Romano talvez seja a melhor. Não é segredo nenhum que muitos dos diversos males que efermam a nossa sociedade advêm da sua evolução para lá das nossas possibilidades de a acompanhar enquanto seres vivos. Está certo que o ponto de ruptura foi imensamente adiantado por sociólogos e filósofos que, acima de tudo, tiveram pouca fé na capacidade inventiva (em sentido lato) do ser Humano, mas o caminho para o ponto de ruptura é uma realidade, quer seja o nosso quer seja o do mundo que nos rodeia.
Parafraseando Churchill, pode não ser o fim, nem sequer o princípio do fim, mas pode ser que seja o fim do princípio.
Tendo dito isto, também não me parece que ele queira prever o fim absoluto do ser humano. Creio sim, e mais uma vez virando-me para o Império Romano, que a alusão é muito mais ao período em que já nos encontramos que levará o ser humano a questionar os seus valores até ao mais arreigado dogma.
Parem a Revolução tecnológica. Vamos a uma Evolução Cultural.
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